domingo, 7 de fevereiro de 2016

desmontando preconceitos

Um feriado no meio da semana serve para pôr a casa em ordem. Chamei um conhecido (digamos aquele profissional entre o marido de aluguel e o zelador faz-tudo) para me auxilar num trabalhinho complicado: montar uma estante que comprara pela internet.
Ele chegou à minha casa antes das 8 horas. Até aí, tudo bem, né? Ele previa que ia trabalhar muito pra ganhar um troco inversamente proporcional! Ficou toda a manhã tentando desvendar de que lado ia um e outro parafuso. Foi empenhado nas tentativas várias. Ao meio-dia me sugeriu que fôssemos almoçar e prometeu retomar a labuta no fim da tarde (porque havia outro "cliente" à sua espera). Não me opus.
Quando eram 4 da tarde, ele interfonou anunciando que já estava pronto para encarar o segundo tempo daquela batalha que travava contra os pedaços inflexíveis de madeira. Abro a porta e dou de cara com os dois. Ele trouxe reforço! Tive a impressão de que era um presente logo de cara! O cara alto, forte, boa pinta entrou sem cerimônia e foi logo dizendo que entendia do riscado. Contive o riso (misto de demonstração de aprovação e bandeira explícita de satisfação com aquela presença suntuosa dentro de casa). Deixei-os trabalhando na sala e me mantive reclusa na lida doméstica (também não queria desperdiçar o momento; eu passava uma pilha de roupas). 
O clima pedia um contato mais descontraído... atravessei a sala e fui pôr um café pra coar na cafeteria elétrica da cozinha. Depois de pronto, ofereci a bebida aos dois como quem pede a aprovação de alguém por uma grande obra executada. Sentei na sala para tomar uma xícara e mantive o quanto pude aquele ar espontânea e deliberadamente desinteressado. 
Não sei se "ele" (o ajudante) percebeu meu olhar sobre seus gestos ou se estava mesmo absorto e aparentemente mergulhado nos meus livros. Quando dei por mim, estava ele, estava eu, os dois perdidos entre os títulos que habitam os espaços encolhidos entre um romance e outro. Ele se virou, de repente, "não mais que de repente" e desabafou: "É difícil essa coisa de Literatura, né?". Não sei se ele percebeu a minha expressão diante daquela frase-constatação tão coerente! Só balancei  cabeça em concordância. e ele prosseguindo: "Porque esses dias eu li o Dom Casmurro, todo mundo um dia tem que ler, então eu li. Mas não gostei. Acho que ele usa umas palavras muito difíceis. A gente tem que ir e voltar pra entender. Aí perde o interesse pela leitura, porque a gente não se prende na história." Concordei com todas os seus argumentos. Estava deslumbrada. E ele a completar sua explicação "li até o fim, mas não gostei." Eu tive de dar sequência àqueles pensamentos tão sensatos "eu também, na adolescência, tentei ler Macunaíma e detestei. Fiquei com nota vermelha e só fui mudar de ideia na faculdade..." fui dando toda a ficha sem me mostrar orgulhosa por ter estudado na USP, por estar me descobrindo "escritora" e ele, tão delicadamente me interrompeu para confirmar meu grande feito: Nossa! Você estudou na USP?! Parabéns!" Fiquei toda sem rumo, desconcertada. Achei melhor voltar à roupa por passar que me aguardava no outro cômodo. E antes de deixá-los na sala, eu sugeri a ele que tentasse ler poemas, que em geral são mais curtos e ri meio debochada e sarcástica. Apontei-lhe na outra estante os livros de poesia, segurei o meu e mostrei-lhe a capa brincando "pelo menos a capa deste é bacana". Ele riu. Eu saí dali, finalmente.Eles só me chamaram no fim do trabalho.
Ao saírem, ele me pediu um exemplar de "O texto sentido". Entrou no elevador com o livro aberto, dizendo "Nossa! Como você escreve bem! Seus poemas são lindos! Só paro de ler quando chegar ao fim! Parabéns!